18.8.14

A tradição já não é o que era...

Sou do tempo, em que os homens morriam como vinham ao mundo. Com mais ou menos pêlo, barba rija ou quase imberbes.

Conheciam-se pelo olhar e pelo sobrolho. 

O Torga, por exemplo, de olhar profundo e sobrolho carregado, não fosse ele transmontano dos sete costados e alguns pecados, não escondia ser seco como o bacalhau miúdo e rude como as pedras do Alto Douro. 

O Eça, esse, tinha olhar de óculo telescópico, capaz de ver, como poucos, as profundezas do carácter da gente que então punha e dispunha e que ele, magistralmente, descompunha. 

O Eugénio era mais polido, de olhar poético, sobrolho angélico, poesia depurada e despudorada, de mar a menos e (a)mar a mais.

Nesse tempo, era o olhar e o sobrolho que definiam os homens de então.

Agora, agora está tudo mudado. Definitivamente, estou cada vez mais “cota” e démodé. E quando me perguntam o que é que eu nunca conseguiria ser, a resposta sai rápida e sem hesitações: consultor de imagem.

Já viram bem o que é manter o Seguro com o sorriso de placa dentária, Portas à cata do camera-man mais próximo, evitar que Cavaco mastigue de boca aberta ou que Passos seja tenor apenas no duche? Não deve ser nada fácil.

Mas o que me deixa mesmo verdadeiramente constrangido, é a questão da sobrancelha. É o must dos últimos tempos. Na TV, não há comentador, jornalista ou convidado que não passe, obrigatoriamente, pelo atelier de pintura de sobrancelhas e sobrolhos.

Será que no curriculo vitae, tipo Europass, é condição sine qua non para ser televisto, constar que “aceito que me pintem a sobrancelha”. Se sim, a minha carreira audiovisual acabou antes de ter começado. Não me sujeitaria ao disfarce, a troco de um minuto de fama. Mesmo que me dissessem que ficaria bem aquele tom castanho-chocolate ou preto- pérola a condizer com o cabelo agrisalhado.

Que me desculpem os meus amigos que aderiram à moda. Mas no meu tempo, eram as mulheres que, com razão e muita coragem, lutavam pela ida ao cabeleireiro e pelo uso da calça de ganga. Agora somos alguns de nós que nos concertamos nas cadeiras da pose, de sobrolho travestido e olhar comprometido.

Mesmo com olhar carregado e de sobrolho selvagem, prefiro o azedume do Torga ou a ironia queirosiana. Ora essa...





                        adelino pires | alfarrabista, 15 agosto 2014

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